O livro será sempre o elo mais forte entre Marcelo Rebelo de Sousa e as Terras de Basto. Diz que, além dos vários milhares de exemplares que já enviou para Celorico de Basto, mais virão nos próximos tempos. E que a biblioteca a que empresta o nome tem de ser insubstituível. A caminho do final da sua Presidência da República, sentou-se com o Terras de Basto, concluído mais um dia de trabalho.
Veio a Celorico de Basto e aproveitou para apresentar publicamente a Oficina da Música, espaço polivalente instalado pelo município no edifício escolar do “antigo ciclo”. Almoçou com autarcas, falou muito à comunicação social, ouviu a Banda de Música de Santa Tecla e apresentou um livro sobre António Ribeiro, o cardeal-patriarca nascido em São Clemente. Pelo meio, distribuiu beijos e abraços a rodos. Privilegia as mulheres na abordagem, mas não olha a idades. E os homens, nota-se, também gostam dos afetos.
Num cadeirão da Casa da Terra, aguardado pela ajudante de campo e pelo presidente da câmara, falou a este jornal da avó Joaquina e da doação que ora fez em sua memória ao grupo cultural de Gandarela de Basto, da maior dificuldade em presidir à assembleia municipal de Celorico de Basto do que à de Cascais, e defendeu «medidas de discriminação positiva» para as terras de montanha como combate à «inevitabilidade» da desertificação.
Voltando aos livros e à biblioteca celoricense, a que sempre volta, falou da “Fatinha” e revelou que, após o fim do mandato, se propõe dedicar aos mais jovens, em idades de ensino básico e secundário, um pouco por todo o país, mas em que «um polo importante será certamente Celorico de Basto, ligado à biblioteca e a biblioteca ligada às escolas».
— Localizadas embora em Pedraça (Cabeceiras de Basto) e Gandarela (Celorico de Basto) as origens dos avós paternos, Santos-o-Velho (Lisboa) é apontado como local de nascimento do pai Baltazar Rebelo de Sousa. Em que circunstâncias isso aconteceu? Viviam em Lisboa os avós paternos?
— O meu pai nasceu em Lisboa. A minha avó Joaquina, que é da Gandarela, São Clemente, viveu aqui com a família… Mais tarde, namorou com o meu avô, que era de Pedraça, em Cabeceiras de Basto. Ele morreu muito cedo, ficando ela como chefe de família… Daí a ligação a Celorico de Basto.
— Acaba de formalizar a doação de uma propriedade que herdou dessas origens familiares a uma coletividade de Gandarela de Basto. Era o titular dessa herança ou fê-lo em nome da família? Que significado tem essa doação? Quer contar-nos como se processou?
— No fundo, trata-se de terreno que era da minha avó e que, depois, por partilhas e por vontade do meu pai, imediatamente antes de morrer, já lá vão mais de vinte anos, ficou para o irmão, Olavo. Tivemos a nossa parte, ficámos com a nossa parte lá… E os descendentes do irmão do meu pai, do meu tio Olavo, entenderam que devia ser doado a uma instituição de solidariedade social. Nós concordámos, os meus irmãos e eu. E, portanto, depois de um processo, que é sempre longo e burocrático, envolvendo o município, chegou-se a essa conclusão. Que é uma homenagem à minha avó e a perpetuação da sua presença e da presença da família neste concelho e, concretamente, naquela freguesia.
— Houve razões do foro político-partidário que contribuíram para reforçar a relação de Marcelo Rebelo de Sousa com Basto, concretamente em circunstâncias que o fizeram candidato à Assembleia Municipal de Celorico…
— É muito simples. Na altura, era líder do partido, e defendia que os políticos, que tendo tido embora outras responsabilidades, nomeadamente num governo, deviam ter também experiência autárquica. Eu estava à vontade, porque tinha tido essa experiência autárquica desde 1979, antes mesmo da experiência governativa. Tinha voltado a ter mais tarde, nos anos 90, primeiro em Cascais e depois em Lisboa.
Convidei então todas as figuras do partido que já tinham tido experiência política nacional, nomeadamente governativa, a aceitarem lugares autárquicos. Aí, o presidente da Câmara Municipal de Celorico de Basto, que era também o presidente da Concelhia do partido, o professor Albertino Mota e Silva, convidou-me em pleno congresso, assim de surpresa… “Olha, porque é que não dá o exemplo e vem para Celorico de Basto?”. E eu disse “sim senhor, eu vou por Celorico”. Concorri como cabeça-de-lista à Assembleia Municipal. Fui eleito e estive aqui dois mandatos. Disse que eram dois mandatos… Na altura, ainda não havia limite de três mandatos.
Fiz a viragem do século em Celorico de Basto, depois ainda fui mandatário das candidaturas para o mandato seguinte, também me empenhei no mandato seguinte, já não como autarca, mas a minha ligação permaneceu. E fiquei como consultor, a título gracioso, da Biblioteca de Celorico de Basto. É esta ligação que continua e continuará até o fim da minha vida.
— A propósito, embora estejamos a falar de momentos muito diferentes, qual dos exercícios lhe foi mais difícil, o da presidência da Assembleia Municipal de Cascais ou da de Celorico de Basto?
— Direi que foi mais complicado em Celorico de Basto. Primeiro, eram muito mais freguesias. Aqui, eram o dobro, ou mais do dobro, das freguesias. Segundo lugar, eram muito diferentes entre si. Com uma grande heterogeneidade económica e social. Depois, numa altura ainda muito difícil, em que estávamos no final do “ranking” de municípios portugueses. Praticamente, éramos o último, penúltimo ou antepenúltimo [desse “ranking”].
Porque não tínhamos indústria… porque a agricultura não estava a passar um bom bocado, nomeadamente no que respeita ao setor do vinho… porque o comércio se ressentia e os serviços também… o turismo… Portanto, era um caminho difícil de fazer.
Em Celorico de Basto, fiz presidências-abertas, correndo as várias freguesias. Na altura, preocupado com aquilo que era fundamental para o funcionamento das escolas, a pensar nos mais novos. Nesse sentido, a presidência deu muito trabalho. Não foi vir cá a uma reunião da Assembleia Municipal. Tivemos várias assembleias extraordinárias, rotativas, o que implicava uma organização, uma preparação e uma execução. Que acumulei com outras funções, de professor em Lisboa e, numa parte do tempo, com a liderança do partido. Portanto, como imagina, foi um tempo muito, muito exigente, mas muito estimulante e muito inspirador.
— Ainda neste contexto… Estamos a caminho do fim do segundo e último mandato como Presidente da República. O que reserva Marcelo Rebelo de Sousa para Celorico de Basto na reforma política que se avizinha? Gostava de manter a relação com o concelho e com as Terras de Basto? Já lhe passou pela cabeça como o pode vir a fazer?
— Diria o seguinte… Ainda durante o mandato presidencial não vai haver muito tempo para isso… Por uma razão muito simples: são anos muito ocupados. Este é o ano dos 50 anos do “25 de Abril”. O próximo ano será também muito importante, porque em cima disso cavalga o centenário de Mário Soares. Depois em cima disso cavalga a preparação dos 50 anos da Constituição da República Portuguesa, embora já caiba no mandato de um sucessor. Depois, há compromissos internacionais, que são sempre muito possessivos, e depois, verdadeiramente, estamos a passar no mundo uma situação que exige, no plano interno, um acompanhamento muito atento da parte do Presidente da República.
Por isso, aquilo que refere é mais para o período seguinte ao termo do segundo mandato presidencial. Aí sim, a minha ideia é, em princípio, dedicar-me aos mais jovens. Portanto, básico e secundário, um pouco por todo o país. Vamos ver em que termos. Tenho já uma ideia, e é para concretizar. E um polo importante será certamente Celorico de Basto, ligado à biblioteca e a biblioteca ligada às escolas.
É possível fazer mais coisas… Sempre com a minha preocupação, que é o papel do livro, o papel da cultura, o papel da escola. E trabalhando com gente mais nova, que, além do mais, tem a vantagem de não envelhecer como quando se trabalha com gente mais velha ou minha contemporânea.
— Para lá dos milhares de livros que tem doado à biblioteca a que empresta o nome, o que motiva a que faça em Celorico de Basto o depósito de um acervo documental puramente pessoal, como tem feito? Seu, mas também de seu pai… Idealiza associar à biblioteca uma unidade museológica que evoque os Rebelo de Sousa?
— Não, não, não. Eu sei que há uma parte que tem objetos pessoais, muitos pessoais, e tal… E de que, mais tarde, irão fazer um aproveitamento, mais em função da pessoa e não da biblioteca. São coisas que fui reunindo ao longo do tempo… Mas, quanto à biblioteca, a minha ideia é integrá-la completamente na biblioteca municipal, sem haver aquele lugar, ou um canto… ou uma parte específica… Não faz sentido, porque, como tenciono continuar a veicular para Celorico de Basto tudo aquilo que é a minha biblioteca, e o muito que tenho ainda em Lisboa, é evidente que o que faz sentido é que, uma vez integrada na biblioteca, é a Biblioteca de Celorico de Basto.
— Neste contexto, tem feito sugestões à Fatinha?
— Não. A Fatinha [Fátima Cunha, diretora da Biblioteca Municipal Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa] não precisa. Porque a Fatinha é uma mulher espetacular. Está desde a primeira hora ligada à biblioteca e, portanto, sabe exatamente o meu pensamento, o pensamento originário do município. E ela própria tem de ter a liberdade de dirigir, criando, recriando, as vezes que forem necessárias. A biblioteca tem de ter um papel insubstituível.
— Dando, por último, um salto para realidades mais palpáveis… Os concelhos de Basto são dos que, no interior do país, sofrem particularmente o fenómeno da desertificação. Não lhe parece que é mais do que tempo para a definição de políticas públicas multi-setoriais expressamente dirigidas ao combate a este problema? Que ultrapassam as razões económicas…
— Sabe, isso é uma inevitabilidade… Diria o seguinte… A desertificação em geral dos chamados interiores é um problema nacional. As desigualdades e a falta de coesão é um problema nacional. A existência de um atraso, que nalguns casos é dramático e noutros menos dramático… Mas o atraso e uma assimetria que punem o todo nacional é uma evidência. A ideia de que não é mau haver uma parte do país que vai muito avançada e outra que não vai a esse ritmo… é um erro. Puxa para trás. No caso das Terras de Basto, podemos e devemos… O PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] é uma ocasião para isso, o “Portugal 2030” é uma ocasião para isso…
Mas no caso das freguesias de montanha, por exemplo… é evidente que tem de haver medidas de discriminação positiva. Para puxar por elas. Não penso que seja fácil a solução. Nem que se resolva achando que se volta atrás e se volta a tentar fazer lá uma agricultura e uma pecuária que são de outra época. Portanto, tem de se procurar… no domínio da valorização do território, da cultura do território, da riqueza patrimonial, do turismo de qualidade, da vivência das pessoas, de novas formas de atividade produtiva. E o produtivo pode ligar-se ao cultural. Àquilo que seja futuro, e não passado.