MARCO GOMES (*)
Inicio esta minha intervenção resgatando de 1974 um trecho de uma letra intemporal que consta da música de um álbum lançado poucos meses após a “revolução de Abril”, o dia inicial inteiro e limpo. «Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação».
Vivemos numa sociedade em que tudo produz em comum, embora não seja para uso comum aquilo que se produz. Não temos, atualmente, uma sociedade em que os ganhos coletivos sejam equitativamente distribuídos, havendo quem tenha muito sem muito fazer e quem muito faça e tenha pouco. Não é livre quem à carência está sujeito, não é livre quem não pode decidir. Devemos abertamente assumir este desígnio comum de erradicar a carência e dar a todos a liberdade de decidir.
É o nosso dever comum envidar todos os esforços para que haja uma vitória sobre a carência; para que quem nasce, nasça com as suas condições materiais de vida satisfeitas, para que possa ter tempo para viver e criar livremente. Este dever cumpre-se participando, desprendida e humanisticamente, na vida coletiva. Participando nas comunidades locais, nas associações, nas cooperativas, nos movimentos sociais, nos partidos políticos e na política. Isto é tomar o nosso destino com as mãos, sem medos nem reverências, tentando transformar a realidade no futuro que queremos.
Contudo, esta participação na vida pública está assombrada pelos tempos de relações sociais frágeis, em que cada vez mais se tornam relações mercantilizadas e individualizadas. Quase tudo gira em torno do eu-consumista, autocentrado e constantemente afagado pelo uso intencional dos algoritmos das grandes tecnológicas para nos manterem sossegados e fiéis ao deus Mercado.
«Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação».
A Paz:
Hoje discute-se, no espaço geopolítico da União Europeia, a excecionalidade económica e financeira de uma “corrida” armamentista, agitando os fantasmas do passado de uma «ameaça russa», estimulando um
«pânico moral» um método de manipulação de massas sobejamente conhecido e utilizado. Tentam impor um gasto inimaginável de recursos materiais e imateriais de todos nós numa Europa militarmente superior à aclamada «ameaça russa» não dando conta, de propósito, que perante a crise financeira, sublinho, com origem na especulação da grande finança mundial, não houve qualquer excecionalidade para o essencial, cortando de forma cega os salários, os apoios sociais, os gastos em saúde e em educação.
De referir, também, a hipocrisia e passividade dos nossos Estados perante o genocídio que acontece na Palestina, em que temos o Estado de Israel a cometer crimes de guerra em prol de um projeto etno-nacionalista totalmente contrário aos princípios fundacionais da “revolução de Abril”.
Falar da paz em Portugal, é defender a Paz na Palestina e outros territórios em que os mais frágeis e desprotegidos são, sempre, as vítimas.
O Pão:
Com a industrialização e a automação dos meios de produção, o tempo e os rendimentos estão mal distribuídos. Uns poucos têm muito, muitos têm pouco. E o problema de fundo é o mesmo: a concentração do tempo e dos rendimentos nas mãos de poucos à custa do esforço e do trabalho de muitos.
Hoje, em Portugal, um euro de rendimento do trabalho paga mais imposto do que um euro de rendimento de capital, promovendo, assim, uma transferência de riqueza dos de baixo para os de cima.
Hoje, em Portugal, trabalha-se mais de quarenta horas semanais, quando no século dezanove se defendia a jornada semanal de quarenta horas, ou seja, com toda a evolução tecnológica, com todos os ganhos de produtividade do último século, trabalhamos tempo demais à custa do tempo para a participação pública, para o lazer, para os nossos. Não deve ser assim.
Habitação:
Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa. Hoje, em certas cidades portuguesas, o preço de arrendamento e de compra de uma casa é superior ao ganho médio do trabalhador português. Isto é uma urgência nacional. A habitação não deve ser um jogo de especulação. Ter uma habitação é um direito constitucional e uma exigência existencial. Não ter uma habitação condigna e materialmente acessível é um problema e deve ser tratado com políticas públicas sérias e imediatas.
Saúde:
Uma das maiores conquistas de Abril, o nosso Serviço Nacional de Saúde, está hoje ameaçado com a escassez de recursos e políticas governativas errantes. Como princípio, a Saúde não deve ser vista como um negócio. Como tal, um SNS com melhores salários, melhores condições de trabalho e de progresso, com a incorporação de inovação e tecnologia e longe das lógicas mercantilistas de mercado é um serviço mais forte e capaz. O contrário do que se pratica hoje e do que defendem os governos quando privilegiam a transferências de recursos públicos para o setor privado.
Educação:
A Ciência, o Conhecimento e a Educação são os eixos de desenvolvimento de qualquer sociedade digna e civilizada e estão, hoje, sob um ataque cerrado de negacionistas, obscurantistas e demais figurões sinistros. É um dever de quem quer lutar contra os nossos maiores males comuns, o racismo, a intolerância e o individualismo consumista, defendendo o primado do conhecimento como a base de progresso de uma sociedade que se quer livre e criativa.
Por fim, pensar Abril é, também, pensar local. Que rumo queremos para a nossa terra? Que objetivo nos moverá a percorrer o caminho da existência coletiva? Perante o despovoamento do território, o envelhecimento da população, as consequências das alterações climáticas e o centralismo politico-administrativo, é de um rumo novo que precisamos.
Um rumo novo que não deve ser imposto. Não deve nascer de cima e ser altivamente apresentado aos de baixo. Pelo contrário, deve ser discutido nas ruas, nas instituições, com todos, dos mais novos aos mais velhos, para que em diálogo possamos construir um rumo novo, um projeto de futuro para nossa terra e para as nossas pessoas.
Em momentos difíceis, mais do que nunca, é preciso estabelecer as prioridades do presente, não em função do presente, mas em função do futuro.
Prioridades do presente passam pela:
- criação de emprego e na aposta na digitalização da economia local, como fatores determinantes de fixação e atração de pessoas para o território; e com enfoque no emprego com qualidade, bem remunerado e com vínculos duradouros, como condição para o aumento da taxa de natalidade;
- reforço da educação superior, formação profissional, da saúde e do apoio social, cuidando e protegendo os mais vulneráveis e dos mais velhos, aumentando o bem-estar e a coesão social da nossa comunidade;
- resposta séria às alterações climáticas, estimulando um modelo sustentável de crescimento, uma gestão inteligente dos recursos humanos, financeiros ambientais e culturais, apostando no uso das energias renováveis, na mobilidade verde e na economia circular;
- promoção de uma governação do território planeada, que presta contas, atendendo ao local e ao global e promovendo a participação de todos na vida pública.
Para que a nossa terra possa ser outra coisa devemos, antes de mais, compreender, como escreveu Miguel Laranjeira, que viveu a transição da Monarquia para a República, que o nosso mal «é ninguém sentir necessidade de fazer cultura, é ninguém compreender que a inteligência é o grande capital dos povos modernos e a cultura a mais fecunda das revoluções».
Viva a Liberdade!
Por Abril, obrigado.
(*) Intervenção feita esta sexta-feira (25), enquanto representante do movimento “Independentes Por Cabeceiras”, na sessão comemorativa do aniversário do “25 de Abril”.
