Por Afonso Valente Batista (*)
Esta crónica vem a propósito do imoderado aparecimento na cena política de personagens providenciais que, com um discurso eivado de reacionarismo conservador, prometem uma nova ordem. Outra vez? Ainda está na memória o que aconteceu em meados do século passado. Os providenciais desses idos deram origem à segunda Guerra Mundial. Recuemos no tempo para ver como foi por cá. Dizem os afamados mestres de todos os saberes que a história se repete. Será?
Mataram o rei, vozeou-se pela cidade. Um novelo de alarmes a alastrar. Perguntou-se: como? A tiro, disseram os que tinham visto. Finou-se rápido, asseguraram. Pelo menos essa consolação. Deus o tenha no seu regaço, disseram os que sempre gostavam de realezas. Acabaram-se festanças, charutos, caçadas e as aguarelas com barcos pintados no cocuruto de ondas calmas. Agora está a pintar no inferno, disseram os que aplaudiram o regicídio. E o rei que gostava de pintar só calmos pores-do-sol fez-lhes a vontade. Agora está morto. E o assanhado povo, cheio de fomes e prantos, à espera das revoltas que haveriam de vir.
Pergunta-se: quem matou o rei? Uns: que não se sabia. Outros: foi o Manuel Buiça, um tipo da Carbonária. Havia muitos que não gostavam de aguarelas com barcos pintados no cocuruto das ondas, em calmos pores-do-sol, responderam vozes misteriosas. Ficou-se por aqui. Apeado o rei, vieram novos reis. Agora reis republicanos. Dizem que não têm coroa. Os do povo, numa surpresa. Se calhar por nenhum ter coroa, todos a querer mandar.
Bota abaixo. Eu é que sei como se governa esta coisa. Fiz a leis e os decretos. Qual quê, eu sou o herdeiro das ideias da liberdade, igualdade e fraternidade, que interessa isso, governo eu porque os do povo estão comigo, deixa-te disso, sou eu quem manda na tropa e tenho uma canhoeira fundeada no Tejo. Se ordenar, varre a baixa da cidade a eito.
Os do povo eram uma mercadoria transitória só chamado para apear uns e alcandorar outros. Que destino? A salvação do país tardava com tantos cartolas emplumados a debaterem-se; agora mando eu, agora mandas tu, num sobe e desce inflamado das apetitosas escadarias do poder. E os do povo com a penúria sentada à mesa. A miséria era uma sarna que não largava a pele de quem já só ossos. E o palavreado dos políticos só inutilidades.
Um dia, os que tinham as espadas e sabiam usar os canhões, carregaram as espingardas, montaram as cavalgaduras com o garbo de ainda aristocracias, fizeram um golpe militar e ala a caminho da capital para pôr ordem na rebaldaria. Gritaram: Ditadura. Agora quem manda somos nós. Acabou-se a bandalheira. Quem se opuser vai tudo raso, como se diz lá no quartel. Deram uns tiros para o ar para mostrar que era a sério e meterem os mais assanhados na cadeia, exibindo quem mandava.
O povo amansou e desde logo ficou escrita a sorte dos que discordavam. Com a penúria instalada, a dívida externa a galopar, o cofre falido e não sabendo como lidar com as coisas das contas e dos dinheiros públicos, os da metralha que tinham o poder ao colo, debatiam ignorâncias, discordavam soluções, altercavam sabedorias e, muitos, já com o arrependimento de se terem metido naquela alhada. Não sabiam como alimentar o poder e como se alimentar dele. Ignorância dos homens da caserna, disse-se. Todavia, concluíram: só um iluminado que fosse doutorado em cifrões e contas de carreirinha os salvaria da enrascada em que se tinham metido.
Longe do impetuoso mundo do poder, na insignificância da meia dúzia de casas que enfeitavam a aldeia, vivia uma humilde criatura que cultivava uma pequena horta, onde couves e feijões floriam para a sopa que lhe purificava a alma seminarista e criava galinhas com desvelo para logo as sacrificar num ou outro dia santificado para sorver uma canja com miúdos de que tento gostava.
Devoto às orações, à leitura dos breviários, às leis do País e às astutas normas que o manobravam, sabedor da tormentosa complexidade de como gerir as finanças públicas, o nosso homem tinha dado provas nas coisas das leis, dos teres e dos haveres, quando se fizera doutor na cidade dos doutores. Diz quem viu, que estarrecera os catedráticos que comentaram espantos pelo tanto saber que a criatura demonstrara.
Feito o brilharete, sentindo invejas e guardando vinganças, recolheu-se ao mundo das orações, que partilhava com um amigo que tinha seguido a vida eclesiástica, dos livros, da horta e das galinhas. Dizia-se que vivia alheio aos solavancos do poder, porém, vigilante porque sabia, lá bem dentro do orgulho, que um dia o viriam chamar. Secreto feitio, haveria de se dizer mais tarde.
Os da metralha com os muitos galões e medalhas a enfeitar o peito que fizeram o golpe militar num dia 28, andavam cada vez mais desconsolados. Não atinavam quem lhes resolvesse o rombo nos cofres do Estado. Improvisados leitores do destino, falaram-lhes na predestinada sabedoria de um certo tipo, algo esquisito, que vivia lá para as berças, num recolhimento de ermita, à espera que o fado que estava escrito nos entremeios do porvir viesse bater-lhe à porta da humilde casa.
Espantados com as abonatórias referências sobre o desconhecido asceta, decidiram visitar o homem e fazer-lhe o convite para descer até à cidade e aos corredores do poder. Atropelando-se num frenesim de esperança, fizeram-se ao caminho, aos solavancos por estradas poeirentas, em sua busca. Engalanados na farda de cerimónia e medalhas a preceito, os da metralha, todos falinhas mansas não fosse o casmurro espantar-se, mesmo no meio das couves e das galinhas a debicar o chão entre a botas engraxadas, prometeram-lhe abastança do mando e tudo o que achasse conveniente para endireitar a fazenda do País.
Ao chamamento dos da metralha, o asceta respondeu relutâncias, como era seu hábito. Matreiro, deixou correr o tempo. Os outros cada vez mais aflitos, redobravam promessas, cederam condições, afirmaram desejos. Finalmente, num fio de voz que o caracterizava, disse que sim, que iria experimentar. Mas tudo teria o seu preço. Obstinado e enigmático, foi, desde logo, reclamando exigências.
Aliviados, os dos cavalos e das espadas, que tudo bem. Lá estariam para o que desse e viesse. Era só acertar as contas e abonar o cofre falido. Nada mais. A populaça estava amansada. Podia carregar nos impostos, que as cadeias estavam desimpedidas para os recalcitrantes. Era para isso que servia a ditadura!
Depois de tudo decidido e apalavrado, o somítico doutor apanhou a camioneta da carreira na tosca terra onde vivia encafuado e chegou de mansinho à capital, trajando fato preto e calçando botas até acima dos artelhos, para, com autoridade, convicção e desdém, tomar conta do cofre do País.
Foi assim que a providencial criatura acudiu ao País, a que preferia que chamassem Pátria ou Nação. Endireitadas as insolventes finanças e conhecida a situação de desconchavo do mando nas coisas da governação, tomou-lhe o gosto e acreditou ser o profeta portador das divinas providências para salvar a Nação das patéticas peripécias com que os fardados governavam a coisa.
Manso, mas inflexível, a partir do governo do cofre e do graveto, foi tomando conta de tudo e, implacável, já com a polícia política a seu lado, ordenou o regresso a quartéis os das espadas e dos canhões, mandando-os puxar brilho às baionetas, que era só para isso que serviam. A mesma sorte tiveram os que alimentavam serôdias saudades de aristocracias que, por saberem montar a cavalo, determinou que tratassem das rações das alimárias, que das coisas do governo da Nação nada percebiam.
O brinquedo agora já não era deles e deviam ficar muito quetinhos, obedecendo ao lema “Deus, Pátria e Autoridade”. Passou a governar sozinho como era sua ambição. Iluminado por obstinadas ideias, ficou só ele a pôr e dispor de tudo e de todos. À ditadura proclamada pelos outros chamou-lhe sua e fez dela a sua forma de governo por muitos e muitos anos. Refinou-a, deu-lhe substrato constitucional, criou poderes para a defenderem, polícias para a vigiarem e bufos para denunciar os que dela discordavam. Pelas cadeias passaram muitos opositores. Ninguém reparou que Salazar dissera, num discurso pífio, que «a autoridade não se discute».
(*) Escritor