Quinta-feira, Setembro 19, 2024
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As camélias dos narigudos

Por Joaquim Castro Gonçalves (*)

Sopra uma leve brisa… uma brisa que cheira a maresia, uma brisa que ecoa a marulho e nos transporta para longínquas viagens que mergulham nas águas do tempo… um tempo onde os portugueses, caricaturados com longos narizes pelos japoneses, que os alcunharam de “namban jin”, “bárbaros do sul”, desafiavam os seus medos para descobrir todo um mundo novo.

Naquele tempo e naqueles mares navegava um poeta, de parca vista, inspirado pela epopeia dos narigudos… nobres aventureiros, de largas vistas, que buscavam no comércio a glória e a fortuna que o chão do reino não lhes dava. Muitos vinham das frias terras do norte, onde as fidalgas e vetustas casas, feitas de escuro granito, eram envoltas pelo verde, que não o que hoje conhecemos, de pequenos e formais jardins, sufocados por vinhas, mas um verde de viçosas hortas ajardinadas, cuja mistura e tratamento de espécies se apelidou de “jardim horta”.

E os narigudos pela botânica se interessaram… Segundo a lenda, trouxeram sementes de “tsubaki”, a árvore japonesa das folhas luzidias, que séculos mais tarde deslumbrou o ocidente. Mas perdida nas brumas da memória dos aventureiros narigudos, a sua descoberta os ingleses reclamaram… Batizou-se “camélia”.

As sementes brotaram, lá pelo longínquo século XVI ou XIX, quiçá, e rasgaram a terra dos jardins do norte de Portugal. Espante-se: ao surgirem frágeis e coloridas flores, de formas variadas, as iniciais talvez singelas, mas as vindouras semelhantes a peónias e rosas, encantaram os colecionadores e os amantes dos jardins.

No esquecido cantinho das Terras de Basto, os jardins proliferaram. Aqui, a camélia era a rainha, à semelhança do que já se passava pelas terras de outra majestade, a rainha Vitória, onde a “tsubaki” foi esculpida segundo antigas técnicas, chamada de topiária, a “topiarius” da Roma antiga e, possivelmente, da remota Babilónia.

As mentoras destes Jardins de Basto foram as irmãs D. Emília Ermelinda e D. Justina Praxedes, da abastada família de antigos comerciantes portuenses e fidalgos da Casa Real, os Pinto Basto. Casaram com nobreza de província de Casas de Celorico de Basto e de Cabeceiras de Basto e nelas ensaiaram o que tinham visto por Inglaterra… mágicos jardins moldados pelos jardineiros, verdadeiros mestres de arte, que davam largas à sua imaginação.

Envoltas nesta magia dos Jardins de Basto, estavam as camélias esculpidas minuciosamente e salpicadas desde o outono até à primavera pelas exóticas flores orientais, que por aqui chamaram de japoneiras, alusão à sua provável vinda do Japão, e ligação aos curiosos “botânicos” narigudos.

As suas constantes podas pelos jardineiros de Basto conferiram-lhe grossos troncos, que baralham os entendidos, escondendo a sua idade. A fértil terra minhota, constantemente regada por chuvas intermitentes e persistentes, dá-lhes o alimento que precisam e a força para se fortalecerem, atravessando assim os séculos, incólumes e postas em majestade nestes jardins históricos.

Rasgam a terra, chão de nobres famílias, entroncadas na memória do reino de Portugal, e erguem-se como genealogia antiga, cruzada e torcida, que impõem a sua presença nas tradicionais casas da fidalguia, feudos dos narigudos empinados, que souberam dar forma à ancestral árvore, que se tornou um símbolo das Terras de Basto.

Pelas Terras de Basto não cheira a maresia, cheira a terra molhada… Pelas Terras de Basto não se ouve o marulho, ouve-se o chilrear do pisco-de-peito-ruivo e o cantar da poupa… Pelas Terras de Basto já não há um mundo novo, mas sim um velho mundo, cujas raízes se entranham nas profundezas da terra… um velho mundo de torcidos troncos cobertos de líquenes, e que deles teimam em brotar folhas luzidias e exóticas flores… o velho mundo das camélias dos narigudos.

«Mas não deixes no mar as Ilhas, onde
A Natureza quis mais afamar-se.
Esta, meia escondida, que responde
De longe à China, donde vem buscar-se,
É Japão, onde nasce a prata fina;
Que ilustrada será co’a Lei divina.»

(Excerto da estrofe 131, Canto X, “Os Lusíadas”, Luís Vaz de Camões)

(*) Historiador de Arte

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